domingo, 23 de novembro de 2014

O MAR - Capítulo Um

A PANTOMIMA DO DESEJO


Páscoa ensaia o abandono da partida: a porta que fecha atrás de si; o portão que abre para a rua vazia à frente; a caminhada que inicia rumo ao desconhecido. Escuta seus passos sobre as pedras do calçamento. Troca de mão a maleta que segura e testa o limite do peso que pode suportar, ora mais, ora menos, em movimentos lentos e concentrados.
Sua figura recorta-se na penumbra do quarto como uma mancha do escuro. Efeito dos cabelos negros, derramados pelas costas, e do branco longo e largo da sua camisola. A poucos metros, o marido dorme. O lençol que o cobre desliza de um lado do corpo sem um vinco sequer. Do outro lado, pende em veios e redemoinha em dobras sobre a superfície lisa do leito. As mãos cruzadas sobre o peito e as pernas estiradas evocam rígida prontidão. Herculano, como se chama, tem trinta e sete anos. Páscoa, quase trinta.
Soa um estalido e o rosto de Sofia, de nove anos, surge pela fresta da porta que se abre, deixando penetrar no ambiente tênue claridade. A menina se assusta em dar com a mãe como um fantasma. Já Pascoa ao vê-la, se lembra de quando, na cama, apoiada nos braços, curvou-se sobre si e viu, por entre suas pernas, o futuro sem escolhas que acabara de nascer de olhos abertos. Sente-se mal; a maleta cai da sua mão.
O barulho acorda Herculano. Sobressaltado, levanta-se, enquanto Sofia, que não sabia da sua chegada, fecha a porta, sem fazer barulho.
– O que faz? – pergunta Herculano dirigindo-se à Páscoa, que não lhe responde.
Custa-lhe tanto falar, ainda mais atordoada. Deixa-se ser conduzida à cama.
Herculano observa o espaço e ergue a sua maleta do chão. O que quis fazer? Olha para a mulher encolhida sobre o emaranhado do lençol. Está cada dia pior. Quando isso terá fim? Põe o objeto sobre a arca e sai. Ronda o interior do sobrado: primeiro o quarto da filha, que finge dormir; depois, os outros aposentos. Ao longo do percurso, torna-se cada vez mais audível o soar do pêndulo do relógio da sala. Neste espaço, tudo também está fechado, em perfeita ordem. A única desordem é Páscoa.
    

Copyright © 2013 by Maria Tereza O. S. Campos
Copyright de adaptação para Cinema e TV © 2005 by Maria Tereza O. S. Campos


4 comentários:

  1. Li o primeiro capitulo. Simplesmente maravilhoso. Amei a forma que você escreve. E a história me parece ser linda. Vou ler todos os dias um capítulo... Sucesso pra você minha querida. Já amei este primeiro capitulo.. Abraços.
    Rudy Rossi

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  2. Excelente leitura! Tenho certeza que será um sucesso. Parabéns amiga!

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